Rear Window (Janela Indiscreta, 1954) de Alfred Hitchcock foi o primeiro filme que eu vi duas vezes e os dois visionamentos foram na televisão, não numa sala de cinema ou no ecrã de um computador. A primeira vez foi numa tarde domingo e eu tinha provavelmente 12 anos de idade. Tinha ouvido falar de Rear Window e de Alfred Hitchcock, mas não sabia muito sobre ambos. O filme deixou em mim uma impressão profunda, o que, creio, teve menos que ver com a história do que com a intensa emoção de ter sido envolvido por ele. Foi sempre isto que Hitchcock procurou atingir e, como tantas vezes acontece nos seus filmes, ele alcançou isso estruturando a gramática de Rear Window de tal forma que o espectador é encorajado a se identificar com o intenso envolvimento das personagens nos acontecimentos da própria história.
A outra vez que vi Rear Window foi três ou quatro anos depois. Por esta altura tinha-me tornado muito interessado em cinema. A televisão britânica passou ciclos de filmes de realizadores conhecidos e canónicos. Antonioni, Godard, Chabrol, Varda, Eisenstein, Fellini, Ozu, Kurosawa, Fassbinder, Bergman, Hawks, Welles, Wilder e outros. Lia vários livros sobre cinema e eram as imagens nesses livros que conduziram o meu interesse pela fotografia. Claro, fotografias de filmes são uma forma marginal de imagética. Elas não parecem pertencer à história do cinema, nem à história da fotografia. São imagens em si mesmas, mas também fragmentos de qualquer coisa maior e isto torna-as um tanto impuras ou híbridas. Não era capaz de expressar nada disto nessa altura, mas intuía-o. Arranjei uma câmara SLR de 35mm. Construí uma sala escura na casa da minha família. Também adquiri um antigo projector de slides.
Certo dia vi na programação de TV que Rear Window ia passar de novo. Quando chegou o momento, carreguei a minha câmara com película de transparência colorida, pus a câmara no tripé e coloquei o tripé em frente ao televisor. Decidi que ia tentar capturar o Rear Window a trinta e seis exposições, trabalhando de memória. O movimento e a pista sonora seriam sacrificados em proveito das imagens estáticas. Assisti ao filme pela objectiva da minha câmara, da mesma forma que a personagem de James Stewart no filme observa o pátio através da objectiva e binóculos.
Falhei terrivelmente a minha tarefa. Tirei muitas fotografias perto do início do filme e escolhi vários momentos errados para pressionar o obturador. Uns dias depois, projectei as minhas fotografias em sequência na parede do meu quarto. Ficou claro para mim que a tarefa era impossível e essa impossibilidade era em si mesma uma forma fascinante para pensar sobre um muito rico conjunto de questões relacionado com o movimento e a imobilidade, o silêncio e o som, a imagem e a linguagem, fotografias e narrativa. Essas questões continuaram a enformar a minha relação com a fotografia enquanto escritor, curador, editor, educador e produtor de imagens. A tecnologia mudou muito desde aí, mas as questões não.
Os meus trinta e seis frames estão perdidos há muito. Não os vejo há muitos anos. Mas eu sei que eles estão todos lá, no filme de Hitchcock.
David Campany
Professor, crítico, curador e artista, autor do livro Photography and Cinema.
Tradução: Luís Mendonça